Sempre
que uma catástrofe acontece, reclama-se do modo como a mídia explora o fato.
Realengo, desastres naturais, e agora a tragédia da Kiss. É claro que a coisa
continua nojenta. Eles fazem tudo parecer um Big Brother versão dark e o pior é que conseguem sim tornar
o espetáculo interessante. Simplesmente não dá pra ignorar.
Alguns
podem achar a coisa normal. Afinal, o jornalismo tem essa função de nos deixar
informados sobre tudo (eu disse TUDO) o que acontece aqui e lá fora. E hoje em
dia todos nós viramos correspondentes honorários com nossos celulares, tablets,
câmeras digitais. Nem sei se a expressão “cinegrafista amador” deveria ainda
existir. Quase nada acontece sem ser filmado ou fotografado.
E é
aí que vem meu ponto de reflexão. Stephen King, nas diversas vezes em que é
questionado sobre sua opção por escrever histórias de terror, não raro repete
seu argumento sobre o acidente na estrada. Não há aquele que, dirigindo numa
rodovia, ao se deparar com uma cena de acidente, não desacelera e dá uma bela
olhada no quadro. Claro que nessa olhada está um pouco de preocupação,
misericórdia pelas vítimas e a vontade de ajudar, caso seja possível. Mas a
verdade é que no fundo, no fundo, todo mundo que dá uma olhadinha está mesmo é
à procura de enxergar sangue, vísceras, talvez um membro decepado. Palavras do
mestre.
Parece
mórbido, mas o próprio pai da Carrie explica que esse é um comportamento
inteiramente natural, uma vez que faz parte do instinto imanente do homem,
enquanto animal, flertar com o medo a fim de aprender a defender-se do perigo. O
que a mídia faz é apenas alimentar esse instinto. É por isso que os programas
policiais de meio-dia seguem prolíficos há anos. Você está almoçando e basta
zapear os canais para passar os olhos em um vasto menu de mortes no qual se pode vislumbrar corpos sucumbidos em
diversas posições dentro de possas de sangue derramado por meio de ferimentos a
bala, faca, facões, cutelos, fuzis, atropelamento, queda de moto. Ou pode ser
também um afogamento, um mau súbito, uma overdose. Como diria Seu Omar: “Trágico...trágico”.
Centenas
de pessoas morrem todos os dias diante das câmeras. E os jornais repetem as
cenas várias vezes para que tenhamos a certeza de ter visto com detalhes o
assassinato. “Veja novamente na imagem o momento em que o assaltante atira no
dono da loja.” E o vídeo destaca num círculo iluminado a mão do marginal
empunhando o revolver e bam-bam-bam. O homem cai atrás do balcão.
Aí
uma boate pega fogo. Mais de duzentas pessoas mortas. Mas desta vez é numa só
tacada.
Eu
sei que não acontece, mas às vezes imagino o magnata de uma emissora dessas
sentado em sua sala, a cabeça apoiada sobre as mãos entrelaçadas, atento diante
vários monitores ligados em diferentes canais do mundo. O telefone toca, é o
chefe da central de jornalismo informando ao patrão sobre a tragédia. O homem
corpulento se regozija em seu terno caro. “Mande todas as equipes pro local! Quero
gente 24 horas no ar, manchetes em todos os programas! Entrevistem os parentes
das vítimas, façam o público chorar junto com eles! Não perca um detalhe!”. É
viagem cinematográfica, mas não dá pra evitar visualizar isso.
Eu
poderia criticar a mídia por não ter respeito pelos parentes das vítimas e por
sua dor. Mas se eu fizesse isso eu seria um grande hipócrita (apesar de eu
achar que todo mundo, sem exceção guarda em si um pouco de hipocrisia em um
ponto ou outro de suas convicções, mesmo que por pura falta de atenção...). Primeiro
porque muitas vezes, mesmo em meio a todo o sensacionalismo, o jornalismo
presta até um serviço às pessoas envolvidas, informando locais de apoio,
convocando voluntários e ajuda com recursos e doações. E segundo porque tudo o
que eles fazem é alimentar nosso instinto stephenkinguiano
de dar sempre uma olhadinha a mais na tragédia.
Se o
magnata maquiavélico está lá regendo o modo como nos apropriamos dos fatos e
consumimos a dor alheia como entretenimento, não dá pra saber. A única certeza
que eu tenho é de que se ele está lá, é porque nós consumimos o produto que ele
vende. Não foi ele que banalizou a violência, o sexo e a falta de bom senso. E
isso não é bom nem ruim. É um fenômeno apenas. Sad, but true.