segunda-feira, 25 de março de 2013

VIGIAI! O FIM ESTÁ LONGE!


"E na hora mais sombria/ Eu possuo as chamas secretas/Podemos observar o mundo devorado em sua dor."- (THE BEGINNING IS THE END- Smashing Pumpkins) 


Eu ia para o trabalho. A pé como sempre.
Caminho a maior parte do trajeto seguindo o longo muro do cemitério e a manhã impede que nessa parte eu encontre muitas pessoas. Aí eu chego ao Centro. O cenário muda completamente. As pessoas se espalham como um enxame do que você quiser usar como comparação, qualquer animal que se reproduz vertiginosamente e invade todos os lugares sem o menor escrúpulo.
 Os sons são desconexos como você bem sabe, mas então uma voz clama na multidão. O homem fala aos gritos. Discursa veementemente e me faz corrigir a impressão inicial. É num deserto que ele clama. A placa de papelão em seu peito o denuncia. Mais um profeta anunciando algo sobre o fim. Eu paro compadecido e me perco no mesmo deserto. Tudo ao redor silencia e só ouço agora sua voz que diz assim:
“Nas ágoras o que eles discutiam não era sobre a gente. Nos grandes conselhos dos reis do Velho Mundo eles também não falavam sobre a gente. Quando derrubaram os déspotas, não foi pela gente.
Quando as guerras pelas colônias explodiram, cresceram e viraram mães de guerras menores e mais mortais, ainda não era sobre a gente.
Quando eles brigam e se agridem, tomados de paixão e fúria nas assembleias, quando brandem seus dedos e cospem nos microfones, não é por nada que envolva a gente.
Royalties do petróleo, Comissão de Direitos Humanos, questões bioéticas. Licitação das obras da copa, quem fornece o que para o sistema de saúde, quanto é repassado para os municípios. Leis, medidas provisórias, emendas, decretos. Absolutamente nada é sobre a gente.
De dois em dois anos, cumprimos o dever de realizar nosso pequeno papel de coadjuvante no divertido teatrinho de apertar botões e fingir que isso muda as coisas. Não importa o quanto se pesquise, o quanto se saiba que eles são limpos, sujos ou simplesmente não sejam aptos a nos representar. Eles não vão nos representar. Uma ou outra vez uma boa intenção emerge do mar de demagogia. Mas no final das contas...não é sobre a gente.
Crianças ainda atravessam rios na madrugada para ir à escola. Elas dormem com brinquedos e acordam com um baseado. Famílias esperam a morte vinda de uma montanha molhada pela chuva. Homens e mulheres esqueceram que são filhos de Deus e vasculham lixo para transformá-lo em vida. É isso o que deixamos o inimigo fazer.
Alguns de nós fechamos os olhos. Outros desviam o olhar. Os mais corajosos usam armas, atiram pedras e coquetéis molotov. Davi e Golias, mas nesta versão, o Golias esmaga a cabeça de Davi com uma maça de guerra.
Existem duas verdades nisso tudo, irmãos. A primeira é que ainda não sabemos lutar. Mesmo que tivéssemos coragem, lutar sem a necessidade de tiros é muito mais difícil, porque exige disciplina e concordância entre os companheiros. Os companheiros são humanos, então não.
A segunda é que essa concordância deve ser a de não haver governo. NÃO HAVER GOVERNO, IRMÃOS! Nenhum além da própria consciência de que precisamos um do outro e que só podemos crescer juntos. De que numa árvore com muitos frutos eu só poderei pegar mais de um se meu irmão também puder. Humanos, irmãos. Humanos.
Essa é a verdadeira evolução que funcionaria para nós. Isso é possível. É utópico. É só um sonho. Mas é a única resposta. Temos um inimigo contra o qual não podemos lutar porque o conhecemos pouco. O nome dele é política. E ele é sujo.
Então esperem, meus amados. Devemos esperar e pensar. Um dia nós iremos descobrir o jeito e a arma. Esse será o dia em que o sofrimento vai começar a fenecer. Será o fim do dinheiro, dos governos e do controle. O fim deste mundo.”
O homem encerrou a pregação. Retomei meu caminho, ele veio na direção oposta. Quando se aproximou, pude ler o que havia escrito na placa. VIGIAI! O FIM ESTÁ LONGE! Só então pude ver seu rosto mais claramente. Olhei fixamente para ele e congelei. Aquele homem era...


segunda-feira, 18 de março de 2013

MAPAS...



Há uns treze anos atrás, quando no fim da adolescência eu definia meus objetivos mais pelo que eu não queria ser, uma das coisas que mais me inspiravam era a possibilidade de conhecer lugares novos. Eu andava por aí muito deslumbrado com o número incrível de pessoas diferentes e com o fato de que Fortaleza é uma cidade tão grande e diversa que os bairros eram quase como cidades pequenas dentro de um território maior. De fato, devem existir países por aí mundo afora que são até menores que Fortaleza. Eu quase me alimentava com essa ideia.
Um belo dia eu saí pela casa caçando antigas listas telefônicas, arranquei as folhas dos mapas e montei um caderno com eles. Eu tinha o objetivo de sair por aí, sentar em algum banco de terminal, abrir meu pequeno atlas, apontar um lugar na cidade em que eu nunca estivera e pegar o primeiro ônibus para lá. Daria uma olhada ao redor, conversaria com as pessoas e depois talvez eu escrevesse algo sobre elas com minha obsessão por registrar a vida que os governantes não governam.
Eu fiz isso umas duas vezes. Em uma delas, meu amigo Cabelo e eu rodamos de ônibus por algumas horas e acabamos numa parada próxima ao Iguatemi no encalço de uma garota que ele achou que lhe deu bola no ônibus. Lá lemos Florbela Espanca e Alvares de Azevedo e da conversa saiu o nome da banda que estávamos montando. Foi uma viagenzinha bem fajuta, mas a verdade é que logo descobrimos que meu plano de reconhecimento de território não poderia acabar bem. A menos que eu fosse invisível ou andasse com uma arma de intimidação altamente eficaz, não havia maneira de voltar pra casa vivo de uma incursão nas entranhas do Bom Jardim, por exemplo. O que é uma pena mesmo.
Não demorou até que eu deixasse a ideia de lado, mas eu tive o caderno de mapas até pouco tempo atrás. Não importava para onde eu fosse, sempre o levava na bolsa. Quando comecei a dirigir, ele me salvou muitas vezes. Sempre tive um terrível senso de direção e me perdia frequentemente. Um belo dia meu pai foi limpar o carro e ele desapareceu.
Lembro um dia em que eu estava no Dragão do Mar com um pessoal e tirei-o da bolsa, fiquei um tempo ali, absorto, olhando algumas ruas, meio alheio ao que se passava. Alguém do grupo me notou, um carinha de óculos e cabelo desgrenhado, parecia que uma máquina do tempo o cuspiu dos primórdios dos anos noventa. “Que é isso aí?”, perguntou. “Um caderno com os mapas das ruas de Fortaleza.”, respondi. De alguma forma eu me sentia envergonhado por aquilo que notei ser uma excentricidade aos olhos das pessoas que não me conheciam. Ele estranhou aquilo e um dos meus amigos explicou o que era e pra que servia. O rapaz se deteve um momento me olhando de forma ambígua. “Ei!”, exclamou ele como se acordasse de uma profunda reflexão interior sobre algo completamente insólito para sua concepção. “Tu é legal, ó!”, concluiu. Então fui eu que achei a coisa excêntrica. Demorou até que eu interpretasse aquela reação como um elogio, mas eu consegui dizer um tímido “valeu, aí...”. A noite foi bem louca e infelizmente não pude mais conversar com o carinha.
Meu caderno de mapas, assim como minha coleção de quadrinhos, meus diários e meus livros era um símbolo que representava o modo como minha mente funcionava. Eu não me sentia exatamente perdido. Mas precisava loucamente de algo que me indicasse onde eu deveria ir. De tempos em tempos eu penso em sair por aí atrás de listas e refazer meu trabalho.
Mas desta vez, eu apenas paro, entro pelos corredores tortuosos da minha mente e procuro as listas. Os mapas que coleto são mapas dos caminhos que eu tracei até agora. Estou montando esse novo caderno, agora mais completo e sóbrio. Nele estão representadas as ruas mais perigosas, os cantos mais escuros e os bairros em que não se deve nem pensar em ir. Mas também estão ali aqueles lugares maravilhosos, cheios de desafio e imensidão. Estão as trilhas para os templos dos sábios, dos alfarrábios e das paragens serenas.
Para esse novo caderno de mapas, precisarei ter muito mais coragem do que tive com o primeiro. É que a maioria dos lugares indicados ali precisam ser visitados. Mais que isso, conquistados. Alguns deles já estão sob meu domínio. Mas faltam muitos ainda a desbravar.
No caderno antigo eu fiz uma capa e nela escrevi com giz de cera: ”Cidade de Fortaleza”. No capa deste novo escreverei: “Meu espírito”.



segunda-feira, 11 de março de 2013

E AGORA, GATINHO?!

"Sonho de Mil Gatos- Sandman"- Neil Gailman

Duas cenas. Uma real e outra fictícia. Não sei por que, mas essa semana, sob efeito de um anti-inflamatório forte que me deixou grogue, somado à minhas atuais preocupações profissionais e financeiras, eu ouvia Nick Drake deitado em minha rede numa madrugada e essas duas cenas me assaltaram.
De início, considerei mero delírio, mas à medida que elas foram se desenrolando segundo minhas lembranças incrivelmente ainda nítidas, percebi certa relação entre as duas.
A cena real era a lembrança de uma ocasião em que eu estava de viagem com minha esposa e meus cunhados. Estávamos arrumando nossas coisas quando fui à cozinha e percebi que no condomínio vizinho havia uma janela pequena aberta. Lá estava um gatinho que mal passava de um filhote e chorava muito. Tudo ok, se depois minha cunhada não tivesse chegado e revelado que provavelmente o gatinho estava preso lá há dias, pois nosso bloco de apartamentos era o único ocupado naquela temporada. Os donos devem ter ido embora e deixado o bichinho lá preso, com fome, sede e muito medo. Não adiantava nada ir lá. Portas trancadas, só os donos têm a chave.
E agora, gatinho?
Não teve jeito. Não adiantava explicar que tínhamos de arrombar a porta para tirar o bichano de lá, ou chamar os bombeiros. A briga seria feia. Ninguém ia se manifestar e acho que os bombeiros não iriam deixar de apagar incêndios para salvar gatos presos. Um defensor mais corajoso de animais teria ido arrombar a porta. Eu senti todo aquele desespero do gatinho. Mas o deixei lá.

"Watchmen"- Alan Moore
A cena fictícia vem de um dos maiores clássicos dos quadrinhos de todos os tempos. Ela apareceu quase imediatamente após eu deixar de lado a lembrança anterior: a desintegração do Dr. Jon Osterman no simulador de campo intrínseco em Watchmen, se não me engano no número 4, “O Relojoeiro”. O cientista prepara a experiência junto de seus colegas de trabalho na câmara que irá realizar uma espécie de fissão nuclear cronometrada. Ao sair da câmara ele percebe que esqueceu seu relógio de estimação e volta para apanhá-lo. Mas a câmara se fecha, pois é o momento exato da fissão. Ele fica lá trancado, sabendo que não poderá mais sair. Seus colegas nada podem fazer a não ser observá-lo pela escotilha e dar um último aceno de adeus e um “sinto muito, Jon”.
E agora, Jon Osterman?
Na vida real, dizem, os gatos têm nove vidas (apesar de em minha infância eu sempre ter participado do consenso de que eram apenas sete. De qualquer forma, os bichanos ainda estão no lucro). Se é verdade, o bichinho, de alguma forma miraculosa achou um jeito de sair da sua prisão sem ter de se espatifar no concreto. Embora minha imaginação seja pobre o bastante para bolar uma saída para ele, gosto de acreditar que ele conseguiu. Quanto ao bom doutor, Alan Moore fez o trabalho todo por mim e o presenteou com a capacidade de ter cada átomo do seu corpo controlado pela sua própria consciência, de modo que ele não só aprendeu a se reagrupar voluntariamente como ganhou controle sobre todas as partículas ao seu redor tornando-se um tipo de “deus” onipotente e onisciente.
Na vida real, nos momentos em que eu me pergunto “e agora?”, eu me pergunto como cheguei até ali. Se poderia ter evitado, se aquilo tudo vai mesmo valer a pena. As grandes mentes me ajudam a enxergar um pouco mais claramente que existe algo além do “agora”. Do grande apuro em que por vezes me vejo preso. E como eu não tenho sete nem nove vidas, ou partículas autoconscientes, eu apenas recorro a outro mestre dos quadrinhos e dou mais um passo.
“Acredite-me, Ângelo! Quando você está se afogando, você não pergunta a um tronco flutuando na água ‘...qual o seu tamanho?’”
“Mama mia! Jacob, o poeta!”
“Ora! Se sobrevivência é poesia, sim serei poeta!”
(Em Força da Vida, de Will Eisner).

"Força da Vida"- Will Eisner

segunda-feira, 4 de março de 2013

NAQUELES DIAS

“Just a perfect day/ You made forget myself/ I thought I was someone else/ Someone good.”- Lou Reed.

Foto de Alex Supertramp (por ele mesmo)


Se a busca não tem obstáculos e a gente pode passar o dia inteiro trabalhando feito um doido enricando um patrão, boa parte da noite estudando para, quem sabe, um dia ser patrão e de quebra ainda tem internet, comida instantânea (e nada saudável) e um programinha na TV (de preferência um que não nos obrigue a pensar muito, por favor...). Ok. Uma hora o sono vem. Amanhã é outro dia, igualzinho a esse, mas “tudo está no lugar certo”, como diria o infalível Radiohead.
A gente passa o tempo todo correndo de um lado pro outro atrás dos nossos sonhos, de realizar algo. Não é nada difícil se perder dentro dessa busca e numa hora ou outra ela perde completamente o sentido. Basta uma coisinha dessas não funcionar. Uma coisinha só e a cabeça explode.
Só que ironicamente, em alguns desses dias em que há uma porca solta na engrenagem, tudo ao redor está uma maravilha. O mundo simplesmente não se importa se você está bem ou mal. Se é um milionário, um doente terminal ou um inatingível monge budista em pleno Nirvana .
O dia está lindo. O sol ilumina tudo como se estivesse inspirado. Ele está apaixonado e quer que todo mundo sinta o mesmo. Ninguém pode ficar triste hoje, então veja as plantas mais verdes, o brilho sobre as construções. Feias ou bonitas. Igrejas, oficinas, bancos de praças. Veja o brilho sobre as pessoas. Feias e bonitas. Modelos, mendigos e vendedores de pipoca. “Everytihing in it´s right place”. Brilhante como nos melhores dias do passado, quando não havia contas para pagar, desilusões amorosas, a eterna desconfiança no futuro ou qualquer tipo de dor física ou sentimental.
Quem poderia ficar mal num dia desses?
Só eu, pensando que minhas buscas incríveis são mais incríveis que os Quatro Elementos. E aí eu fico em dúvida: a vida é sacana comigo por me dar um dia incrível por fora enquanto estou quebrado por dentro? Ou esse é o modo como ela me diz que tudo vai ficar bem se eu simplesmente respirar trabalhar com calma e esperar?
Um dia eu estava atrasado e o motorista do ônibus parado no ponto, não abriu a porta. O cobrador com cara de quem também não entende nada de sóis galhofeiros me viu, mas não me ajudou. Eu sentei na calçada, olhei para tudo o que brilhava ao redor e pensei: “Obrigado, caras. Hoje estou naqueles dias.”
Parece bobagem. E depois de anos passando por dias assim, não consegui aprender muita coisa apenas sobrevivendo a eles. Só consegui aprender a sentar e observar. Às vezes dá certo, às vezes não (infelizmente na maioria das vezes ainda), mas quando dá eu entro na brincadeira do sol.